30.10.07

Bloguística

Quis saber o que escrevia.
Escrevia a sua vida. A história de um homem que nadara durante três dias no mar, que lutara contra a morte, que perdera o sono e que apesar disso conservara a força de viver.
«Escreve isso para os seus filhos? Como crónica de família?»
Sorriu com amargura: «Para os meus filhos? Isto não lhes interessa. è um livro, o que escrevo. Acho que podia ajudar bastante gente.»
Esta conversa com o motorista de táxi esclareceu-me repentinamente sobre a natureza da actividade do escritor. Escrevemos livros porque os nossos filhos se desinteressam de nós. Dirigimo-nos ao mundo anónimo porque a nossa mulher tapa os ouvidos quando lhe falamos.

Milan Kundera (in O Livro do Riso e do Esquecimento)

Diarística

Estava a pensar noutra coisa: eis a verdadeira e única razão de ser da amizade: fornecer um espelho onde o outro pode contemplar a sua imagem de outrora; e se não fosse o eterno palavreado de recordações entre compinchas, há muito que essa imagem se teria apagado.
(...)
A amizade é indispensável ao homem para o bom funcionamento da sua memória. Lembrar-se do passado, trazê-lo sempre consigo, é talvez a condição necessária para se conservar, como se costuma dizer, a integridade do eu. Para que o eu não encolha, para que mantenha o seu volume, é preciso regar as recordações como as flores de um vaso, e essa rega exige um contacto regular com testemunhas do passado, isto é, com amigos. Eles são o nosso espelho, a nossa memória; não se exige nada deles, apenas que, de vez em quando, puxem o lustro a esse espelho para que nos possamos mirar nele.

Milan Kundera (in A Identidade)

22.10.07

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da [Babilônia num barracão sem
número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Manuel Bandeira

18.10.07

Pátroclo morto













Achilles Lamenting the Death of Patroclus (Gavin Hamilton)

9.10.07

Elegia (auto-irónica)

Neste vil mundo que nos coube em sorte
por culpa dos avós e de nós mesmos
tão ocupados em desculpas de salvá-lo,
há uma diferença de revoluções.
Alguns sofrem do estômago, escrevem versos,
outros reúnem-se à semana discutindo
o evangelho da semana; outros agitam-se
na paz da consciência que adquirem
com agitar-se em benefícios e protestos;
outros param com as costas na cadeia,
para que haja protestos. Há também
revoluções, umas a sério, que se acabam
em compromissos, e outras a fingir,
que não acabam nem começam. Mas são raros
os que não morrem de úlcera ou de pancada a mais,
e contra quem agências e computadores
se mobilizam de sabê-los numa selva
tentando que os campónios se revoltem.
Os campónios não se revoltam. E eles
são caçados, fuzilados, retratados
em forma de cadáver semi-nu,
a quem cortam depois cabeça, mãos,
ou dedos só (numa ânsia de castrá-los
mesmo depois de mortos) e o comércio
transforma-os logo num cartaz romântico
para quarto de jovens que ainda sonhem
com rebeldias antes de empregarem-se
no assassinar pontual da sua humanidade
e da dos outros, dia a dia, ao mês,
com seguro social e descontando
para a reforma na velhice idiota.
Ó mundo pulha e pilha que de mortos vive!

Jorge de Sena