28.3.09

«a crescer numa espécie de sentido ao contrário»

Quando eu tinha oito anos, e brincava no Luxemburgo, havia um que vinha sentar-se numa guarita situada junto ao gradeamento que margina a rua Auguste-Comte. Não dizia nada, mas, de vez em quando, estendia uma perna e olhava para o pé com um ar de terror. Esse pé tinha calçada uma bota, mas o outro estava enfiado numa pantufa. O guarda disse ao meu tio que esse homem era um antigo censor. Tinham-no reformado, porque viera ler as notas do período, nas aulas, em trajo de académico. Tínhamos um medo horrível dele, porque sentíamos que estava sozinho. Um dia sorriu para Robert, estendendo os braços para ele, de longe: por um pouco, Robert não desmaiou. Não era o ar miserável do tipo que nos metia medo, nem o tumor que tinha no pescoço, e que constantemente esfregava na beira do colarinho: é que sentíamos que ele gerava na cabeça pensamentos de caranguejo ou de lagosta. E a nós aterrorizava-nos que se pudessem alimentar pensamentos de lagosta quanto à guarita, quanto aos nossos arcos, quanto aos tufos de arbustos.
É isso então o que me espera? Aborreço-me, pela primeira vez, de estar sozinho. Gostava de falar a alguém do que me está a acontecer, antes que seja tarde, antes de meter medo aos rapazes pequenos. Gostava que Anny estivesse aqui.

Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 21
título: Herberto Helder, Photomaton & Vox, p. 88

«Acontece que os cenários desabam»

E depois, bruscamente, acordei de um sono de seis anos.
A estátua pareceu-me desagradável e estúpida, e senti que me aborrecia profundamente. Não conseguia compreender porque é que estava na Indochina. Que estava eu ali a fazer? Porque estava a falar com aquelas pessoas? Porque estava vestido de uma maneira tão exótica? Tinha morrido a paixão que me submergia e arrastara durante anos; naquela altura sentia-me vazio.

Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 17
título: Albert Camus, O Mito de Sísifo, p. 24

2.3.09

Leitura Oblíqua (acabemos com isto)

E quando ao fim de meses despertamos... acabou-se...

O meu Narciso, fi-lo à minha maneira.
Mas há muito que este diário me irrita.
Volto sem sobretudo.
Também isso me irrita.
Com uma otite e sem saber que fazer, mais irritações.
E ela, By, que terá feito de todo o seu ano?
Parece-me que choraminguei bastante durante toda esta viagem,
Era mais forte do que eu; como uma dívida para com a
minha infância. Eu compreendo-me.
Era agradável pensar que podia fazê-lo,
Eu, mais conhecido como uma velha pele de revolta e raiva.
(...)
O quê? Ainda a tremer?
Ah! Sim, chegamos amanhã.
(...) e ei-lo todo alterado.
Claro! Está de regresso.

Fala alto, é insolente,
Engrossa a voz, vomita alegria,
É evidente que não mudou,
Vítima por igual dos bons e maus momentos.
Numa palavra: comovido.
Vá lá, acabemos com isto.

Henri Michaux, Equador, p. 153-154

1.3.09

Leitura Oblíqua (IX)

Agora estou convencido. Esta viagem é uma asneira. Longe de nos alargar as vistas, viajar torna-nos mundanos, "ao corrente", ávidos de aspectos interessantes, distintos, com o ar estúpido de fazer parte de um júri de prémio de beleza.
Também confere um ar desenrascado. Não é melhor. É possível encontrar a nossa própria verdade contemplando quarenta e oito horas seguidas qualquer tapeçaria de parede.

Henri Michaux, Equador, p. 109