29.4.07

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
(...)
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
(...)
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...


Álvaro de Campos

27.4.07

A perfeição

"E ao herói, que recebera do rei da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade de uma ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes, e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma deusa que, sem cessar, o desejava."

A perfeição (Eça de Queirós)

Hoje, assumiria de peito aberto o destino amargo de Ulisses.

23.4.07

O Outro

Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com o acréscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo de inteligência, um modo de sentimento - tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?

Livro do Desassossego, trecho 214. (Bernardo Soares)

16.4.07

15.4.07

A morte do pai

O pai morreu
e ele, que era duro, endureceu mais.
Informou da existência do cadáver
como quem relembra um pormenor.
Amava o pai, mas o coração é assim
(a lei da sobrevivência):
esconde-se quando o querem matar.

1 (Gonçalo M. Tavares)

14.4.07

Monochrome



Anyway, I can try
Anything it's the same circle
That leads to nowhere and I'm tired now.

Anyway, I've lost my face,
My dignity, my look,
Everything is gone
And I'm tired now.

But don't be scared,
I found a good job and I go to work
Every day on my old bicycle you loved.

I am pilling up some unread books under my bed
And I really think I'll never read again.

No concentration,
Just a white disorder
Everywhere around me,
You know I'm so tired now.

But don't worry
I often go to dinners and parties
With some old friends who care for me,
Take me back home and stay.

Monochrome floors, monochrome walls,
Only absence near me,
Nothing but silence around me.
Monochrome flat, monochrome life,
Only absence near me,
Nothing but silence around me.
(...)


Monochrome (Yann Tiersen & Dominique A)

13.4.07

Boa noite a todos

Lembras-te do teu pai no quintal? Aquele defeito no polegar, a cicatriz no pulso? De fumares às escondidas atrás da capoeira? De roubares ovos para os venderes na loja? O gato de faiança? O gato verdadeiro, só pupilas e cauda? O teu passado foi-se embora, não te recordas de nada, nada disso existiu e é noite. Diz
- Boa noite a todos
diz
- Fcdnqr
o Tejo entende. E depois, a pouco e pouco, desce para ele.

Segundo Livro de Crónicas (António Lobo Antunes)

12.4.07

a straight story

Mas uma delas começou a beber, e depois o coração estoirou, e ficou apenas para os outros uma memória incómoda. Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou. Era uma criança. Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia. Nada mau, para uma antiga criança. A verdade é que era uma criança, e não se aguentou quando o médico disse: aguente-se. (...) Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia agarrar num copo: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria. Era uma criatura excepcional. Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele. E onde está? Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível. Partiu. (...) E depois, e depois? Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se quebrassem entre os dedos. Foi-se embora.

Os Passos em Volta (Herberto Helder)