5.4.09

«Pois é: a minha revolução não dá um passo.»

"(...) Literatura. Merda. Trata-se de mais um dia em que me vou chatear, aturar os meus semelhantes, a filha-da-putice teológico-emocional de um Deus que, ainda por cima, não existe." (1)

"E depois, bruscamente, parte-se qualquer coisa. A aventura acabou, o tempo retoma a sua moleza quotidiana. Viro-me; atrás de mim, uma bela forma melódica mergulha inteira no passado: diminui, contrai-se ao declinar; já o fim se lhe confunde com o princípio. Ao seguir com os olhos esse ponto de ouro, penso que aceitaria - mesmo se tivesse estado em perigo de morrer, se tivesse perdido uma fortuna ou um amigo - reviver tudo, nas mesmas circunstâncias, dum extremo ao outro. Mas uma aventura não recomeça, nem se prolonga." (2)

(1) e título: Herberto Helder, Os Passos em Volta, p. 112
(2) Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 55

«Que revolução? A revolução, claro.»

"Sabe-se como é: quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço-me por imaginar que este dia é virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos, destinado às revelações. (...)" (1)

"Seria preciso, antes de mais nada, que os começos fossem começos verdadeiros. Oh! Vejo tão claramente, agora, o que pretendia! Começos verdadeiros, aparecendo como um toque de trombeta, como as primeiras notas dum ritmo de jazz, bruscamente, cortando rente o aborrecimento, consolidando a duração; noites entre as outras noites, das quais se diz mais tarde: «Andava a passear, era uma noite de Maio...» anda uma pessoa a passear (a Lua acaba de nascer), ociosa, disponível, um pouco vazia. E depois, de súbito, pensa-se: «Aconteceu qualquer coisa». O quê não importa: um ligeiro estalido na sombra, um vulto rápido a atravesar a rua. Mas esse acontecimento obscuro não é semelhante aos outros: percebe-se logo que vem à frente duma grande forma, cujo desenho se perde na bruma, e acrescenta-se: «É o começo de alguma coisa»." (2)

(1) e título: Herberto Helder, Os Passos em Volta, p. 111-112
(2) Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 54

O Tempo Coalhado

"Por cada cem histórias mortas, sempre me ficam, porém, uma ou duas histórias vivas. Essas evoco-as com precaução, de vez em quando, poucas vezes, com medo de as gastar. Peço uma, revejo o cenário, as personagens, as atitudes. Subitamente paro: senti um desgaste, vi uma palavra vir ao de cima da trama das sensações. Prevejo que essa palavra vai tomar o lugar, dentro em pouco, de várias imagens que amo. Imediatamente me detenho; penso depressa noutra coisa: não quero fatigar as minhas recordações. Em vão; da próxima vez que as evocar, parte delas terá coalhado." (1)

"Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra." (2)

(1) Jean-Paul Sartre, A Náusea, p.49
(2) Vergílio Ferreira, A Aparição, p. 9-10

O Tempo Perdido

O sol e o céu azul eram uma burla. Já caí neste logro umas cez vezes. As minhas recordações são como as moedas na bolsa do Diabo: quando a abriram, só lá estavam folhas secas.
Do serrano visiono apenas um olho furado, grande, leitoso. Mas esse olho é realmente dele? O médico que, em Bacu, me expunha o princípio dos sanatórios oficiais de abortamentos era também zarolho, e, quando quero recordar-lhe a cara, é o mesmo globo esbranquiçado que me aparece. Estes dois homens, como as Nornes, têm apenas um olho que cedem um ao outro alternadamente.

Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 48