27.2.08

Viagem Nunca Feita (outra, a mesma)

"Foi por um crepúsculo de vago outono que eu parti para essa viagem que nunca fiz.
(...)
Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque ainda nunca lá estive. Também, igualmente, o propósito ritual da minha viagem era ir em demanda de portos inexistentes - portos que fossem apenas o entrar-para-portos; enseadas esquecidas de rios, estreitos entre cidades irrepreensivelmente reais.
(...)
Eu parti? Eu não vos juraria que parti. Encontrei-me em outras partes, vi outros portos, passei por cidades que não eram aquela, ainda que nem aquela nem essa fossem cidades algumas. Jurar-vos que fui eu que parti e não a paisagem, que fui eu que visitei outras terras e não elas que me visitaram - não vo-lo posso fazer. Eu que, não sabendo o que é a vida, nem sei se sou eu que a vivo se é ela que me vive (tenha esse verbo oco «viver» o sentido que quiser ter), decerto não vos irei jurar qualquer coisa.
(...)
Triunfo-me assim de toda a realidade. Castelos de areia, os meus triunfos?... De que coisa essencialmente divina são os castelos que não são de areia?
(...)
Não desembarcar não tem cais onde se embarque. Nunca chegar implica não chegar nunca."

Livro do Desassossego (Bernardo Soares)

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