26.1.09

Leitura Oblíqua (III)




















































O nome. Procurava nomes e sentia-me infeliz. O nome: valor fora do tempo, e de larga experiência.
Só os há para os pintores no primeiro contacto com o estrangeiro; o desenho, a cor, que todo tão imediato! (...) Um nome é um objecto a desprender.
Ter de desprendê-los. (...)
Ouça-se o público num salão de pintura. De súbito, depois de haver insistentemente procurado, alguém aponta o dedo para o quadro e diz: "É uma macieira". Sentimo-lo aliviado.
Desprendeu uma macieira da pintura! Eis um homem feliz.
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Já repararam como nos aproximamos sem custo da água e quantas pinturas já vimos sobre este tema? É que estar junto da água nunca é ridículo, não compromete ninguém, não tem sombra de sectarismo, não diz nada de previamente decidido, deixa-nos pensar... Árvores, prados, montanhas já são outra coisa, têm lá a sua ideia, dizem-na a fundo e para sempre, e obrigam-nos a participar.

Henri Michaux, Equador, p. 28-30 (sob pinturas do próprio)

24.1.09

Leitura Oblíqua (II)

Oceano Sólido

Quanto ao nosso patinador, é como um ciclista numa ravina. Mas a ravina torna-se montanha, lança-o no vazio, arroja-o para o sopé, depois é o sopé que se torna montanha, eleva-o, lança-o pela borda fora, depois a montanha torna-se outra vez ravina, ravina-montanha, tic-tac...
Debaixo da camisola que lhe fica lindamente, tem as costelas quebradas, parece que lhe moeram as costas à paulada. O sangue apareceu-lhe na boca com a sua maneira de dizer que é grave e que é preciso chamar o médico.

Henri Michaux, Equador, p. 22

23.1.09

Leitura Oblíqua (I)

Só escrevi as poucas linhas precedentes e já estou a matar esta viagem. Julgava-a tão grande. Não. Dará umas poucas de páginas e é tudo.

Henri Michaux, Equador, p. 13

12.1.09

Que és tu aqui?

Faze as malas para Parte Nenhuma!
Embarca para a universalidade negativa de tudo
Com um grande embandeiramento de navios fingidos —
Dos navios pequenos, multicolores, da infância!
Faz as malas para o Grande Abandono!
E não esqueças, entre as escovas e a tesoura,
A distância policroma do que se não pode obter.
Faze as malas definitivamente!
Que és tu aqui, onde existes gregário e inútil —
E quanto mais útil mais inútil —
E quanto mais verdadeiro mais falso —
Que és tu aqui? que és tu aqui? que és tu aqui?
Embarca, sem malas mesmo, para ti mesmo diverso!
Que te é a terra habitada senão o que não é contigo?


Álvaro de Campos, Poesia, p. 479 (Assírio e Alvim, 2002)

1.1.09

200' (ou Não existe nenhum 2009)







































|Escritor| Meu amor, o mundo é enfadonho até mais não. Não há nada: nem telepatia, nem fantasmas, nem discos voadores, nada disso existe. O mundo é regido pelas leis do ferro-fundido. É triste. Infelizmente, estas leis são invioláveis. Elas não sabem violar-se a si próprias. Não conte com discos voadores, seria demasiado empolgante.

| E o triângulo das Bermudas? não me quererá dizer que...

|Escritor| Quero. Não existe nenhum triângulo das Bermudas, Existe apenas o triângulo ABC semelhante ao triângulo A'B'C'. Não sente a tristeza fatal dessa afirmação? Por exemplo, interessante era viver na Idade Média. Cada casa tinha um duende, cada igreja, Deus. A Humanidade era jovem! Agora, um em cada quatro é um velho. Fastidioso, meu anjo!

| Mas dizia que a Zona é obra de uma super-civilização...

|Escritor| Porventura, também é enfadonha, com as suas leis e triângulos, sem duendes e, certamente, sem Deus. Porque, se Deus é o tal triângulo... então, já não sei nada.


Andrei Tarkovski, Stalker (1979)

18.12.08

Dois Rios

O corpo dividido em duas partes
fechadas
à chave uma na outra, avanço
num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios.

Luís Miguel Nava

20.11.08

The Cold Song



What power art thou, who from below
Hast made me rise unwillingly and slow
From beds of everlasting snow?
See'st thou not how stiff and wondrous old
Far unfit to bear the bitter cold,
I can scarcely move or draw my breath?
Let me, let me freeze again to death.

Klaus Nomi (Henry Purcell, King Arthur, Act Three: The Frost Scene)

15.11.08

Strange Love

(or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)

"Os quatro primeiros volumes eram constituídos por uma impressionante acumulação de números e de informações factuais sobre as vítimas de massacres ao longo da história (...) 'não me interessou o confronto de duas forças, por mais desiguais que fossem, interessou-me apenas a Força quando se confronta com a fraqueza'; definindo Busbeck a Força como 'matéria com energia para pôr em perigo uma outra matéria' e a fraqueza como 'matéria com energia vazia', ou seja: 'sem possibilidades de colocar em situação de perigo uma matéria próxima'.
O doutor Busbeck explicava ainda, logo no primeiro volume, que estes dois conceitos eram relativos à matéria vizinha: uma matéria forte era forte em relação à matéria situada imediatamente ao lado. Um povo fraco, isto é 'sem possibilidades de colocar em situação de perigo um determinado exército invasor' não deveria ser considerado, como salientava Busbeck, 'um povo bondoso' pois os factos não se deviam a uma questão de bondade de um lado - as vítimas - e de maldade do outro: os carrascos ou os que executavam o terror. Tratava-se simplesmente de uma questão de possibilidade e não de vontade ou desejo."

Gonçalo M. Tavares, Jerusalém, p. 210

10.11.08

Glósóli



Sigur Ros, Takk, 2005

3.11.08

I Know

You want to go away.
Because they kill all the rabbits here.
But you’re not a rabbit.
Try explaining that to them.

It’s the rabbits that make it impossible.
No, it’s you.
Why me.
Why the rabbits.

If charged by a savage rabbit.
Act like you’re dead.
I know that, you know that.
But does the rabbit know it.

And then the sun stops shining.
After how long.
After four days.
Thank you, I thought for a moment you said three days.

Was that it or did it get dark.
What did you think I wanted.
The same story over and over.
I wouldn’t want anyone else in your place.

Nachoem M. Wijnberg

28.10.08

Redenção, Paroxismo ou Nada Disto

"Com que luxúria [] e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitectura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas fazendo irregularidades nas sacadas - contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!"

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, trecho 226

25.10.08

(os (impossíveis) diálogos)

"Mandaram-me fazer um electro-encefalograma para ver como ia o meu ritmo alfa. eles tinham desconfianças, falavam de estados crepusculares. Divertido. Não havia estados crepusculares, o ritmo alfa ia bem. Cumprimentaram-me muito: «A sua cabeça está firme». Porreiro, eu tinha uma cabeça firme. Era uma coisa alegre. Encontrei-me ainda algumas vezes com o psicanalista. Nessa altura ele interessava-se pelo Apocalipse. Falávamos durante horas sobre a besta com a grande prostituta de escarlate assentada entre os cornos, sobre os cavalos, os sete candelabros, os terríficos gafanhotos de rosto humano e cabelos longos como os cabelos das mulheres. Eu saía do consultório fervendo de inspiração. Escrevi enormes poemas apocalípticos e o psicanalista pôs-se a examiná-los. Foi um bom tempo. Mas eu tinha uma cabeça firme, um belo ritmo alfa. Então, com a minha firme cabeça, comecei a pensar na morte."

Herberto Helder, Photomaton & Vox, p.31 - (os diálogos)

E o meu marido sou eu

"Em que página dos seus livros estava eu? Em que página estava escrito, como título: 'a doença de Mylia', ou, segundo diz, 'a saúde de Mylia'? Que bom alguém saber tanto sobre a nossa cabeça! Dela desconheço o funcionamento médio, quanto mais saber o que ela pode fazer em situações extremas. Caríssimo marido, respeito o seu estudo, os manuais, os professores, os aparelhos, as técnicas, todos os anos em que leu páginas e páginas sobre diagnóstico e tratamentos, respeito tudo isso, mas para se perceber a cabeça de uma pessoa não basta ser médico, tem de se ser santo ou profeta. Conseguir-se ver aquilo que está escondido e aquilo que aí vem. E o meu marido é médico, não é profeta nem santo. É médico."

Gonçalo M. Tavares, Jerusalém, p.49

10.9.08

All Our Yesterdays

Quero saber de quem é o meu passado.
De qual desses que fui? Do genebrino
Que compôs um hexâmetro latino
Que os lustrais anos têm apagado?
É da criança a procurar na inteira
Biblioteca do pai as pontuais
Curvaturas do mapa e as ferais
Formas que são o tigre e a pantera?
Ou daqueloutro que empurrou uma porta
Por trás da qual um homem lá morria
Para sempre, e beijou no claro dia
A face que se vai e a face morta?
Sou os que já não são. Inutilmente
Sou esta tarde essa perdida gente.

Jorge Luís Borges (A Rosa Profunda)

8.9.08

Não é uma salvação

Não és os outros

Não há-de te salvar o que deixaram
Escrito aqueles que o teu medo implora;
Não és os outros e encontras-te agora
No meio do labirinto que tramaram
Teus passos. Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates ou o forte
Siddharta de ouro que aceitou a morte
Naquele jardim, ao declinar o dia.
Também é pó cada palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
Pela boca. Não há pena no Fado
E a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. E és cada solitário instante.

Jorge Luís Borges (A Moeda de Ferro)

10.7.08

Les Paradis Artificiels

"In his first book, Nietzsche defined ebriety as "nature's game with man". Playing is not working or building. It is not performed out of necessity; there's always some form of pleasure as fuel: we play because we play, gratuituosly. Let me add that this play includes two elements in perpetual association: the what and the who. Divided into somebody (that is) feeling, and something (that is) felt, we find that knowledge is our fate, because we are the who, the rest is the what, and the shuttling back and forth of subject and object makes science. Undivided, the what and the who happen to be life, simple life. Knowledge tends to separate, analysing, just as life tends to incorporate, synthezising.
(...)
As old and modern heathens, I consider ebriety to be a remedy against the contraction of our ego, which brings us back, once and again, to a basically "transpersonal" health. In healthy people, when ebriety pushes away the masks the usual outcome is explosions of laughter, followed by different insights.
(...)
Demonizing them [drugs] has only made us more helpless, more cruel towards our fellowmen and more idiotic in the original sense of the word -for idiotés means in classical Greek a person who blindly delegates to others the care of public things. Not only our well-being, but the well-being of our sons and grandsons, depends on disseminating patterns of sobria ebrietas, which reconsider the use of psychoactive drugs as a moral and aesthetical challenge, essentially related to the adventure of knowledge -and also as a palliative for difficult parts of our existence, and for bitter lives. In other words, we should dignify what is now debased, in order to cope with the generalized delusion and abuse created by the prohibitionist experiment."

Voici les temps des Assassins

Antonio Escohotado