29.9.07

Cadeira Atmosférica


















O decorador Jean-Michel Frank ofereceu-me um dia duas cadeiras de puro estilo fim do século. Transformei uma delas, substituindo-lhe o assento de pele por uma placa de chocolate. Depois, desequilibrei-a, prolongando um dos pés com um manipulo dourado de estilo Luís XV. Um dos outros pés estava perpetuamente mergulhado num copo de cerveja. Chamei a este objecto desconfortável «Cadeira Atmosférica». Todos os que a viam sentiam um profundo mal-estar. O que significava isso?

Salvador Dalí, in Vida Secreta

Julgo já ter feito isto, algures, com a minha vida sentimental.

19.9.07

Mémoires Affectives (3)



Magnolia (Paul Thomas Anderson)

Mémoires Affectives (2)



Spider (David Cronenberg)

Mémoires Affectives



Mémoires Affectives, a.k.a., Looking for Alexander (Francis Leclerc)

17.9.07

Da Verdade (ou epistzen)

A verdade é como um tigre que tivesse muitos cornos,
ou então como uma vaca a que faltasse o rabo.

poema Zen (mudado para português por Herberto Helder)

13.9.07

(fragmento)

como sempre vou perdurando
tecendo com o vento pequenas cumplicidades:
assim se desprende a terra,
assim se acumula cinza sob as lajes,
assim me curvo como essas difíceis árvores
nascidas a destempo nas falésias

29.8.07

With Mercy For The Greedy

for my friend Ruth, who urges me to make an
appointment for the Sacrament of Confesson

Concerning your letter in which you ask
me to call a priest and in which you ask
me to wear The Cross that you enclose;
your own cross,
your dog-bitten cross,
no larger than a thumb,
small and wooden, no thorns, this rose --

I pray to its shadow,
that gray place
where it lies on your letter... deep, deep.
I detest my sins and I try to believe
in The Cross. I touch its tender hips, its dark jawed face,
its solid neck, its brown sleep.

True. There is
a beautiful Jesus.
He is frozen to his bones like a chunk of beef.
How desperately he wanted to pull his arms in!
How desperately I touch his vertical and horizontal axes!
But I can't. Need is not quite belief.

All morning long
I have worn
your cross, hung with package string around my throat.
It tapped me lightly as a child's heart might,
tapping secondhand, softly waiting to be born.
Ruth, I cherish the letter you wrote.

My friend, my friend, I was born
doing reference work in sin, and born
confessing it. This is what poems are:
with mercy
for the greedy,
they are the tongue's wrangle,
the world's pottage, the rat's star.


Anne Sexton (com um agradecimento especial ao Nuno Q)

22.8.07

Voltas a mote próprio

(apontamentos para uma (re)leitura)

"Depois de quatro anos passados em Genebra, Sabina vivia em Paris e nunca mais se recompunha da sua melancolia. Se lhe perguntassem o que lhe acontecera, não teria palavras para o dizer. Pode sempre explicar-se o drama de uma vida através da metáfora do peso. Costuma dizer-se que nos caiu um fardo em cima. Carregamos com esse fardo, suportamo-lo ou não o suportamos. Lutamos com ele, perdemos ou ganhamos. Mas o que acontecera ao certo a Sabina? Nada. Deixara um homem porque queria deixá-lo. Esse homem tinha vindo atrás dela? Tinha querido vingar-se? Não. O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser."

Milan Kundera (in, A Insustentável Leveza do Ser)

21.8.07

Ainda o tema


















«O tema é essencial e o único tema válido é aquele que se situa fora do tempo e é trágico.» Mark Rothko (in, A Memória dos Outros, de Marcello Duarte Mathias)

(para uma outra composição de Rothko, fica a sugestão da que pode ser encontrada aqui)

14.8.07

o tema da estação e da morte

«a sombria beleza do tema
da estação e da morte», diz o Kundera algures.
nesta imagem desenha-se um olival perdido
de surdas tonalidades, atrás do cais de onde

se despenhou alguém, alguma forma
aflita e trágica, vinda do fundo súbito de uma
paisagem tão modesta, sob as vozes
de quem chega e quem parte, ou simplesmente foi ali para olhar

outros seres de passagem, outros rasos destinos sem anjo para o remorso.
há flores, dirás, algumas flores diurnas, confiantes,
que outras mãos hão-de dispor na jarra, relembrada
junto à parede branca, mas essas são um ténue

sopro de acaso, ou um fulgor antecipando outra nudez.
quando a luz já se tornou mais húmida e quase musical,
e através da folhagem a harpa do desgaste estremeceu,
e passaram as horas e passaram,

pesadas, contadas, divididas, já não dói
a beleza de alguém que vai partir, a sombria beleza
da sua ocultação intransmissível, uma brisa leve misturar-se-á
ao cheiro de óleo, aos acenos afectuosos, aos

ruídos do tema da estação. é tudo. à noite o olival
será uma massa negra de clareiras adiadas,
atrás do cais sem ninguém e sem tempo, como sempre acontece
nas pequenas estações de uma província da alma.


Vasco Graça Moura

5.8.07

Da Criação

(Mito da Criação)

No princípio existia uma enorme gota de leite.
Então chegou Doondari e criou a pedra.
A pedra criou o ferro;
E o ferro criou o fogo;
E o fogo criou a água;
E a água criou o ar.
Então Doondari desceu pela segunda vez.
Juntou os cinco elementos
E moldou-os num homem,
Mas o homem era orgulhoso.
Então Doondari criou a cegueira e a cegueira derrotou o homem.
Mas quando a cegueira se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari criou o sono, e o sono derrotou a cegueira;
Mas quando o sono se tornou demasiado orgulhoso,
Doondari criou a preocupação, e a preocupação derrotou o sono;
Mas quando a preocupação se tornou demasiado orgulhosa,
Doondori criou a morte, a a morte derrotou a preocupação.
Quando a morte se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari desceu pela terceira vez.
E ele veio como Gueno, o Eterno,
E Gueno derrotou a morte.

do povo Fulani, Mali (in Rosa do Mundo)

1.8.07

Da Identidade

Tirésias

Eu, tal como aqui me vês, nasci louco, segundo o teu juízo; mas sensato, segundo aqueles que te geraram.

Édipo

Segundo quem?! Espera! E quem foi dos mortais que me gerou?

Tirésias

Este dia te há-de gerar e destruir.


Rei Édipo (Sófocles)

22.7.07

Mar de Canal



Mar de canal bô é carambolente
Bô carambola-me nha casamente
Mar de Canal bô carambola-me nha casamente

Oh mar,oh mar qu'zê qu'm fazê-be
'M passá na bô
Bô respinga na mi
Oh mar,oh mar qu'zê qu'm fazê-be
'M passá na bô
Bô respinga na mi

Mar bendito dixa-me pidi-be um favor
Levá mantenha pa gente di nha terra
Mar bendito dixa-me pidi-be um favor
Levá mantenha pa gente di nha terra

Oh mar,oh mar qu'zê qu'm fazê-be
'M passá na bô
Bô respinga na mi
Oh mar,oh mar qu'zê qu'm fazê-be
'M passá na bô
Bô respinga na mi

Cesária Évora (letra de Fernando Andrade)

17.7.07

esboço sem quadro

“Nunca se pode saber o que se deve querer porque só se tem uma vida que não pode ser comparada com vidas anteriores nem rectificada em vidas posteriores. (...) É o que faz com que a vida pareça sempre um esquisso. Mas nem «esquisso» é a palavra certa (...) o esquisso que a nossa vida é, não é esquisso de nada, é um esboço sem quadro.”

Milan Kundera (in A Insustentável Leveza do Ser)

10.7.07

happiness is dangerous

Happiness was a day at a pool
in the grass ringed round
with trees up to the sky

here I was god’s and my
grandpa’s lad – both died,
happiness is dangerous

in the evening the pool has lain down
so mirror-smooth that sky, trees and grass
repeat themselves below the ground

fear and longing both ask me
to come back

Rutger Kopland (Aan de vijver)

3.7.07

Day is Done

When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done

When the day is done
Hope so much your race will be all run
Then you find you jumped the gun
Have to go back where you begun
When the day is done

When the night is cold
Some get by but some get old
Just to show life's not made of gold
When the night is cold

When the bird has flown
Got no-one to call your own
Got no place to call your home
When the bird has flown

When the game's been fought
Newspaper blown across the court
Lost much sooner than you would have thought
Now the game's been fought

When the party's through
Seems so very sad for you
Didn't do the things you meant to do
Now there's no time to start anew
Now the party's through

When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done

Nick Drake (do álbum Five Leaves Left)