E depois, bruscamente, acordei de um sono de seis anos.
A estátua pareceu-me desagradável e estúpida, e senti que me aborrecia profundamente. Não conseguia compreender porque é que estava na Indochina. Que estava eu ali a fazer? Porque estava a falar com aquelas pessoas? Porque estava vestido de uma maneira tão exótica? Tinha morrido a paixão que me submergia e arrastara durante anos; naquela altura sentia-me vazio.
Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 17
título: Albert Camus, O Mito de Sísifo, p. 24
28.3.09
«Acontece que os cenários desabam»
2.3.09
Leitura Oblíqua (acabemos com isto)
E quando ao fim de meses despertamos... acabou-se...
O meu Narciso, fi-lo à minha maneira.
Mas há muito que este diário me irrita.
Volto sem sobretudo.
Também isso me irrita.
Com uma otite e sem saber que fazer, mais irritações.
E ela, By, que terá feito de todo o seu ano?
Parece-me que choraminguei bastante durante toda esta viagem,
Era mais forte do que eu; como uma dívida para com a
minha infância. Eu compreendo-me.
Era agradável pensar que podia fazê-lo,
Eu, mais conhecido como uma velha pele de revolta e raiva.
(...)
O quê? Ainda a tremer?
Ah! Sim, chegamos amanhã.
(...) e ei-lo todo alterado.
Claro! Está de regresso.
Fala alto, é insolente,
Engrossa a voz, vomita alegria,
É evidente que não mudou,
Vítima por igual dos bons e maus momentos.
Numa palavra: comovido.
Vá lá, acabemos com isto.
Henri Michaux, Equador, p. 153-154
1.3.09
Leitura Oblíqua (IX)
Agora estou convencido. Esta viagem é uma asneira. Longe de nos alargar as vistas, viajar torna-nos mundanos, "ao corrente", ávidos de aspectos interessantes, distintos, com o ar estúpido de fazer parte de um júri de prémio de beleza.
Também confere um ar desenrascado. Não é melhor. É possível encontrar a nossa própria verdade contemplando quarenta e oito horas seguidas qualquer tapeçaria de parede.
Henri Michaux, Equador, p. 109
28.2.09
Leitura Oblíqua (VIII)
Nasci Esburacado
É apenas um buraco insignificante no meu peito,
Mas sopra aí um vento terrível,
No buraco há ódio (sempre), pavor também e impotência,
Impotência densíssima de vento,
Forte como os turbilhões.
Partia uma agulha de aço
E não é mais do que vento, mais que vazio.
Maldição sobre a terra inteira, sobre toda a civilização,
sobre todos os seres à superfície de todos os planetas,
por causa deste vazio!
Henri Michaux, Equador, p. 85
26.2.09
Leitura Oblíqua (VII), Freudiana nº2
Escrevo mais uma vez uma carta a meus pais.
A necessidade que tenho de me gabar perante eles! É a minha vingança. Tanto vaticinaram o lerdo zé-ninguém. Grandes frases põem-se irresistivelmente a gabar-me:
"Moro numa cabana de bambus, sustentada por troncos de palmeiras. Aqui, na noite passada, um tigre devorou uma mula, etc."
(...)
Mas de facto não escrevo a carta. Nunca lhes escrevo. Desconfio. Se o tigre me devorasse uma perna, ou nem tanto, se viesse a apanhar uma boa pleurisia na cabana de bambus, eles teriam razão... uma vez mais.
Henri Michaux, Equador, p. 61
3.2.09
Leitura Oblíqua (VI)
Todos os quadros japoneses se parecem com ressurreições. Aqueles nevoeiros levam e ensinam seguramente o olhar, enternecem-nos a visão, sugerem não ser o rosto da natureza e do próprio mineral tão duro nem tão inquebrantável como julgávamos, mas fraco, desamparado, sujeito a tantas perturbações como o corpo da mulher, inspirando-nos simpatia. Há também a pequena nuvem carregada. Deixa-se ficar num buraco todo o dia, ou então esconde-se em qualquer canto de uma pastagem e suga uma ovelha, a fundo.
Henri Michaux, Equador, p. 53 (pintura de Takeuchi Seihō)
31.1.09
Leitura Oblíqua (V), Freudiana nº1
Tanto desejei ter um pai. Quer dizer: um pai como a mulher... que se procura, se escolhe e quando se encontra, é a grande maravilha.
Henri Michaux, Equador, p. 47
Leitura Oblíqua (IV)
Não sou grande cabeça, de maneira que me escapam muitas coisas que devia compreender. É lamentável.
Os doentes vêem personagens infernais nas paredes dos quartos, onde afinal só há pequenos incidentes de luz, linhas, manchas, uma fenda.
Henri Michaux, Equador, p. 35-36
26.1.09
Leitura Oblíqua (III)
O nome. Procurava nomes e sentia-me infeliz. O nome: valor fora do tempo, e de larga experiência.
Só os há para os pintores no primeiro contacto com o estrangeiro; o desenho, a cor, que todo tão imediato! (...) Um nome é um objecto a desprender.
Ter de desprendê-los. (...)
Ouça-se o público num salão de pintura. De súbito, depois de haver insistentemente procurado, alguém aponta o dedo para o quadro e diz: "É uma macieira". Sentimo-lo aliviado.
Desprendeu uma macieira da pintura! Eis um homem feliz.
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Já repararam como nos aproximamos sem custo da água e quantas pinturas já vimos sobre este tema? É que estar junto da água nunca é ridículo, não compromete ninguém, não tem sombra de sectarismo, não diz nada de previamente decidido, deixa-nos pensar... Árvores, prados, montanhas já são outra coisa, têm lá a sua ideia, dizem-na a fundo e para sempre, e obrigam-nos a participar.
Henri Michaux, Equador, p. 28-30 (sob pinturas do próprio)
24.1.09
Leitura Oblíqua (II)
Oceano Sólido
Quanto ao nosso patinador, é como um ciclista numa ravina. Mas a ravina torna-se montanha, lança-o no vazio, arroja-o para o sopé, depois é o sopé que se torna montanha, eleva-o, lança-o pela borda fora, depois a montanha torna-se outra vez ravina, ravina-montanha, tic-tac...
Debaixo da camisola que lhe fica lindamente, tem as costelas quebradas, parece que lhe moeram as costas à paulada. O sangue apareceu-lhe na boca com a sua maneira de dizer que é grave e que é preciso chamar o médico.
Henri Michaux, Equador, p. 22
23.1.09
Leitura Oblíqua (I)
Só escrevi as poucas linhas precedentes e já estou a matar esta viagem. Julgava-a tão grande. Não. Dará umas poucas de páginas e é tudo.
Henri Michaux, Equador, p. 13
12.1.09
Que és tu aqui?
Faze as malas para Parte Nenhuma!
Embarca para a universalidade negativa de tudo
Com um grande embandeiramento de navios fingidos —
Dos navios pequenos, multicolores, da infância!
Faz as malas para o Grande Abandono!
E não esqueças, entre as escovas e a tesoura,
A distância policroma do que se não pode obter.
Faze as malas definitivamente!
Que és tu aqui, onde existes gregário e inútil —
E quanto mais útil mais inútil —
E quanto mais verdadeiro mais falso —
Que és tu aqui? que és tu aqui? que és tu aqui?
Embarca, sem malas mesmo, para ti mesmo diverso!
Que te é a terra habitada senão o que não é contigo?
Álvaro de Campos, Poesia, p. 479 (Assírio e Alvim, 2002)
1.1.09
200' (ou Não existe nenhum 2009)
|Escritor| Meu amor, o mundo é enfadonho até mais não. Não há nada: nem telepatia, nem fantasmas, nem discos voadores, nada disso existe. O mundo é regido pelas leis do ferro-fundido. É triste. Infelizmente, estas leis são invioláveis. Elas não sabem violar-se a si próprias. Não conte com discos voadores, seria demasiado empolgante.
| E o triângulo das Bermudas? não me quererá dizer que...
|Escritor| Quero. Não existe nenhum triângulo das Bermudas, Existe apenas o triângulo ABC semelhante ao triângulo A'B'C'. Não sente a tristeza fatal dessa afirmação? Por exemplo, interessante era viver na Idade Média. Cada casa tinha um duende, cada igreja, Deus. A Humanidade era jovem! Agora, um em cada quatro é um velho. Fastidioso, meu anjo!
| Mas dizia que a Zona é obra de uma super-civilização...
|Escritor| Porventura, também é enfadonha, com as suas leis e triângulos, sem duendes e, certamente, sem Deus. Porque, se Deus é o tal triângulo... então, já não sei nada.
Andrei Tarkovski, Stalker (1979)
18.12.08
Dois Rios
O corpo dividido em duas partes
fechadas
à chave uma na outra, avanço
num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios.
Luís Miguel Nava
20.11.08
The Cold Song
What power art thou, who from below
Hast made me rise unwillingly and slow
From beds of everlasting snow?
See'st thou not how stiff and wondrous old
Far unfit to bear the bitter cold,
I can scarcely move or draw my breath?
Let me, let me freeze again to death.
Klaus Nomi (Henry Purcell, King Arthur, Act Three: The Frost Scene)
15.11.08
Strange Love
(or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)
"Os quatro primeiros volumes eram constituídos por uma impressionante acumulação de números e de informações factuais sobre as vítimas de massacres ao longo da história (...) 'não me interessou o confronto de duas forças, por mais desiguais que fossem, interessou-me apenas a Força quando se confronta com a fraqueza'; definindo Busbeck a Força como 'matéria com energia para pôr em perigo uma outra matéria' e a fraqueza como 'matéria com energia vazia', ou seja: 'sem possibilidades de colocar em situação de perigo uma matéria próxima'.
O doutor Busbeck explicava ainda, logo no primeiro volume, que estes dois conceitos eram relativos à matéria vizinha: uma matéria forte era forte em relação à matéria situada imediatamente ao lado. Um povo fraco, isto é 'sem possibilidades de colocar em situação de perigo um determinado exército invasor' não deveria ser considerado, como salientava Busbeck, 'um povo bondoso' pois os factos não se deviam a uma questão de bondade de um lado - as vítimas - e de maldade do outro: os carrascos ou os que executavam o terror. Tratava-se simplesmente de uma questão de possibilidade e não de vontade ou desejo."
Gonçalo M. Tavares, Jerusalém, p. 210
10.11.08
3.11.08
I Know
You want to go away.
Because they kill all the rabbits here.
But you’re not a rabbit.
Try explaining that to them.
It’s the rabbits that make it impossible.
No, it’s you.
Why me.
Why the rabbits.
If charged by a savage rabbit.
Act like you’re dead.
I know that, you know that.
But does the rabbit know it.
And then the sun stops shining.
After how long.
After four days.
Thank you, I thought for a moment you said three days.
Was that it or did it get dark.
What did you think I wanted.
The same story over and over.
I wouldn’t want anyone else in your place.
Nachoem M. Wijnberg