28.2.09

Leitura Oblíqua (VIII)

Nasci Esburacado

É apenas um buraco insignificante no meu peito,
Mas sopra aí um vento terrível,
No buraco há ódio (sempre), pavor também e impotência,
Impotência densíssima de vento,
Forte como os turbilhões.
Partia uma agulha de aço
E não é mais do que vento, mais que vazio.
Maldição sobre a terra inteira, sobre toda a civilização,
sobre todos os seres à superfície de todos os planetas,
por causa deste vazio!

Henri Michaux, Equador, p. 85

26.2.09

Leitura Oblíqua (VII), Freudiana nº2

Escrevo mais uma vez uma carta a meus pais.
A necessidade que tenho de me gabar perante eles! É a minha vingança. Tanto vaticinaram o lerdo zé-ninguém. Grandes frases põem-se irresistivelmente a gabar-me:
"Moro numa cabana de bambus, sustentada por troncos de palmeiras. Aqui, na noite passada, um tigre devorou uma mula, etc."
(...)
Mas de facto não escrevo a carta. Nunca lhes escrevo. Desconfio. Se o tigre me devorasse uma perna, ou nem tanto, se viesse a apanhar uma boa pleurisia na cabana de bambus, eles teriam razão... uma vez mais.

Henri Michaux, Equador, p. 61

3.2.09

Leitura Oblíqua (VI)















Todos os quadros japoneses se parecem com ressurreições. Aqueles nevoeiros levam e ensinam seguramente o olhar, enternecem-nos a visão, sugerem não ser o rosto da natureza e do próprio mineral tão duro nem tão inquebrantável como julgávamos, mas fraco, desamparado, sujeito a tantas perturbações como o corpo da mulher, inspirando-nos simpatia. Há também a pequena nuvem carregada. Deixa-se ficar num buraco todo o dia, ou então esconde-se em qualquer canto de uma pastagem e suga uma ovelha, a fundo.

Henri Michaux, Equador, p. 53 (pintura de Takeuchi Seihō)

31.1.09

Leitura Oblíqua (V), Freudiana nº1

Tanto desejei ter um pai. Quer dizer: um pai como a mulher... que se procura, se escolhe e quando se encontra, é a grande maravilha.

Henri Michaux, Equador, p. 47

Leitura Oblíqua (IV)

Não sou grande cabeça, de maneira que me escapam muitas coisas que devia compreender. É lamentável.
Os doentes vêem personagens infernais nas paredes dos quartos, onde afinal só há pequenos incidentes de luz, linhas, manchas, uma fenda.

Henri Michaux, Equador, p. 35-36

26.1.09

Leitura Oblíqua (III)




















































O nome. Procurava nomes e sentia-me infeliz. O nome: valor fora do tempo, e de larga experiência.
Só os há para os pintores no primeiro contacto com o estrangeiro; o desenho, a cor, que todo tão imediato! (...) Um nome é um objecto a desprender.
Ter de desprendê-los. (...)
Ouça-se o público num salão de pintura. De súbito, depois de haver insistentemente procurado, alguém aponta o dedo para o quadro e diz: "É uma macieira". Sentimo-lo aliviado.
Desprendeu uma macieira da pintura! Eis um homem feliz.
_______________________________________________________

Já repararam como nos aproximamos sem custo da água e quantas pinturas já vimos sobre este tema? É que estar junto da água nunca é ridículo, não compromete ninguém, não tem sombra de sectarismo, não diz nada de previamente decidido, deixa-nos pensar... Árvores, prados, montanhas já são outra coisa, têm lá a sua ideia, dizem-na a fundo e para sempre, e obrigam-nos a participar.

Henri Michaux, Equador, p. 28-30 (sob pinturas do próprio)

24.1.09

Leitura Oblíqua (II)

Oceano Sólido

Quanto ao nosso patinador, é como um ciclista numa ravina. Mas a ravina torna-se montanha, lança-o no vazio, arroja-o para o sopé, depois é o sopé que se torna montanha, eleva-o, lança-o pela borda fora, depois a montanha torna-se outra vez ravina, ravina-montanha, tic-tac...
Debaixo da camisola que lhe fica lindamente, tem as costelas quebradas, parece que lhe moeram as costas à paulada. O sangue apareceu-lhe na boca com a sua maneira de dizer que é grave e que é preciso chamar o médico.

Henri Michaux, Equador, p. 22

23.1.09

Leitura Oblíqua (I)

Só escrevi as poucas linhas precedentes e já estou a matar esta viagem. Julgava-a tão grande. Não. Dará umas poucas de páginas e é tudo.

Henri Michaux, Equador, p. 13

12.1.09

Que és tu aqui?

Faze as malas para Parte Nenhuma!
Embarca para a universalidade negativa de tudo
Com um grande embandeiramento de navios fingidos —
Dos navios pequenos, multicolores, da infância!
Faz as malas para o Grande Abandono!
E não esqueças, entre as escovas e a tesoura,
A distância policroma do que se não pode obter.
Faze as malas definitivamente!
Que és tu aqui, onde existes gregário e inútil —
E quanto mais útil mais inútil —
E quanto mais verdadeiro mais falso —
Que és tu aqui? que és tu aqui? que és tu aqui?
Embarca, sem malas mesmo, para ti mesmo diverso!
Que te é a terra habitada senão o que não é contigo?


Álvaro de Campos, Poesia, p. 479 (Assírio e Alvim, 2002)

1.1.09

200' (ou Não existe nenhum 2009)







































|Escritor| Meu amor, o mundo é enfadonho até mais não. Não há nada: nem telepatia, nem fantasmas, nem discos voadores, nada disso existe. O mundo é regido pelas leis do ferro-fundido. É triste. Infelizmente, estas leis são invioláveis. Elas não sabem violar-se a si próprias. Não conte com discos voadores, seria demasiado empolgante.

| E o triângulo das Bermudas? não me quererá dizer que...

|Escritor| Quero. Não existe nenhum triângulo das Bermudas, Existe apenas o triângulo ABC semelhante ao triângulo A'B'C'. Não sente a tristeza fatal dessa afirmação? Por exemplo, interessante era viver na Idade Média. Cada casa tinha um duende, cada igreja, Deus. A Humanidade era jovem! Agora, um em cada quatro é um velho. Fastidioso, meu anjo!

| Mas dizia que a Zona é obra de uma super-civilização...

|Escritor| Porventura, também é enfadonha, com as suas leis e triângulos, sem duendes e, certamente, sem Deus. Porque, se Deus é o tal triângulo... então, já não sei nada.


Andrei Tarkovski, Stalker (1979)

18.12.08

Dois Rios

O corpo dividido em duas partes
fechadas
à chave uma na outra, avanço
num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios.

Luís Miguel Nava

20.11.08

The Cold Song



What power art thou, who from below
Hast made me rise unwillingly and slow
From beds of everlasting snow?
See'st thou not how stiff and wondrous old
Far unfit to bear the bitter cold,
I can scarcely move or draw my breath?
Let me, let me freeze again to death.

Klaus Nomi (Henry Purcell, King Arthur, Act Three: The Frost Scene)

15.11.08

Strange Love

(or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)

"Os quatro primeiros volumes eram constituídos por uma impressionante acumulação de números e de informações factuais sobre as vítimas de massacres ao longo da história (...) 'não me interessou o confronto de duas forças, por mais desiguais que fossem, interessou-me apenas a Força quando se confronta com a fraqueza'; definindo Busbeck a Força como 'matéria com energia para pôr em perigo uma outra matéria' e a fraqueza como 'matéria com energia vazia', ou seja: 'sem possibilidades de colocar em situação de perigo uma matéria próxima'.
O doutor Busbeck explicava ainda, logo no primeiro volume, que estes dois conceitos eram relativos à matéria vizinha: uma matéria forte era forte em relação à matéria situada imediatamente ao lado. Um povo fraco, isto é 'sem possibilidades de colocar em situação de perigo um determinado exército invasor' não deveria ser considerado, como salientava Busbeck, 'um povo bondoso' pois os factos não se deviam a uma questão de bondade de um lado - as vítimas - e de maldade do outro: os carrascos ou os que executavam o terror. Tratava-se simplesmente de uma questão de possibilidade e não de vontade ou desejo."

Gonçalo M. Tavares, Jerusalém, p. 210

10.11.08

Glósóli



Sigur Ros, Takk, 2005

3.11.08

I Know

You want to go away.
Because they kill all the rabbits here.
But you’re not a rabbit.
Try explaining that to them.

It’s the rabbits that make it impossible.
No, it’s you.
Why me.
Why the rabbits.

If charged by a savage rabbit.
Act like you’re dead.
I know that, you know that.
But does the rabbit know it.

And then the sun stops shining.
After how long.
After four days.
Thank you, I thought for a moment you said three days.

Was that it or did it get dark.
What did you think I wanted.
The same story over and over.
I wouldn’t want anyone else in your place.

Nachoem M. Wijnberg

28.10.08

Redenção, Paroxismo ou Nada Disto

"Com que luxúria [] e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitectura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas fazendo irregularidades nas sacadas - contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!"

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, trecho 226

25.10.08

(os (impossíveis) diálogos)

"Mandaram-me fazer um electro-encefalograma para ver como ia o meu ritmo alfa. eles tinham desconfianças, falavam de estados crepusculares. Divertido. Não havia estados crepusculares, o ritmo alfa ia bem. Cumprimentaram-me muito: «A sua cabeça está firme». Porreiro, eu tinha uma cabeça firme. Era uma coisa alegre. Encontrei-me ainda algumas vezes com o psicanalista. Nessa altura ele interessava-se pelo Apocalipse. Falávamos durante horas sobre a besta com a grande prostituta de escarlate assentada entre os cornos, sobre os cavalos, os sete candelabros, os terríficos gafanhotos de rosto humano e cabelos longos como os cabelos das mulheres. Eu saía do consultório fervendo de inspiração. Escrevi enormes poemas apocalípticos e o psicanalista pôs-se a examiná-los. Foi um bom tempo. Mas eu tinha uma cabeça firme, um belo ritmo alfa. Então, com a minha firme cabeça, comecei a pensar na morte."

Herberto Helder, Photomaton & Vox, p.31 - (os diálogos)

E o meu marido sou eu

"Em que página dos seus livros estava eu? Em que página estava escrito, como título: 'a doença de Mylia', ou, segundo diz, 'a saúde de Mylia'? Que bom alguém saber tanto sobre a nossa cabeça! Dela desconheço o funcionamento médio, quanto mais saber o que ela pode fazer em situações extremas. Caríssimo marido, respeito o seu estudo, os manuais, os professores, os aparelhos, as técnicas, todos os anos em que leu páginas e páginas sobre diagnóstico e tratamentos, respeito tudo isso, mas para se perceber a cabeça de uma pessoa não basta ser médico, tem de se ser santo ou profeta. Conseguir-se ver aquilo que está escondido e aquilo que aí vem. E o meu marido é médico, não é profeta nem santo. É médico."

Gonçalo M. Tavares, Jerusalém, p.49