"Com que luxúria [] e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitectura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas fazendo irregularidades nas sacadas - contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!"
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, trecho 226
28.10.08
Redenção, Paroxismo ou Nada Disto
25.10.08
(os (impossíveis) diálogos)
"Mandaram-me fazer um electro-encefalograma para ver como ia o meu ritmo alfa. eles tinham desconfianças, falavam de estados crepusculares. Divertido. Não havia estados crepusculares, o ritmo alfa ia bem. Cumprimentaram-me muito: «A sua cabeça está firme». Porreiro, eu tinha uma cabeça firme. Era uma coisa alegre. Encontrei-me ainda algumas vezes com o psicanalista. Nessa altura ele interessava-se pelo Apocalipse. Falávamos durante horas sobre a besta com a grande prostituta de escarlate assentada entre os cornos, sobre os cavalos, os sete candelabros, os terríficos gafanhotos de rosto humano e cabelos longos como os cabelos das mulheres. Eu saía do consultório fervendo de inspiração. Escrevi enormes poemas apocalípticos e o psicanalista pôs-se a examiná-los. Foi um bom tempo. Mas eu tinha uma cabeça firme, um belo ritmo alfa. Então, com a minha firme cabeça, comecei a pensar na morte."
Herberto Helder, Photomaton & Vox, p.31 - (os diálogos)
E o meu marido sou eu
"Em que página dos seus livros estava eu? Em que página estava escrito, como título: 'a doença de Mylia', ou, segundo diz, 'a saúde de Mylia'? Que bom alguém saber tanto sobre a nossa cabeça! Dela desconheço o funcionamento médio, quanto mais saber o que ela pode fazer em situações extremas. Caríssimo marido, respeito o seu estudo, os manuais, os professores, os aparelhos, as técnicas, todos os anos em que leu páginas e páginas sobre diagnóstico e tratamentos, respeito tudo isso, mas para se perceber a cabeça de uma pessoa não basta ser médico, tem de se ser santo ou profeta. Conseguir-se ver aquilo que está escondido e aquilo que aí vem. E o meu marido é médico, não é profeta nem santo. É médico."
Gonçalo M. Tavares, Jerusalém, p.49