9.6.09

Vida, vida (é uma dedicatória)

1.

Não acredito em pressentimentos, nem agoiros
Me assustam. Não evito a calúnia
Ou o veneno. Não há morte sobre a terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há
Que ter medo da morte aos sete
Nem aos setenta. O real e a luz
Existem, mas não a morte ou a treva.
Viemos hoje à enseada,
E o cardume da imortalidade veio
Quando eu puxava as redes.

3.

Escolho uma idade à minha medida.
Guia-nos o sul, com remoinhos de pó sobre a estepe;
Renques daninhos, pragas de gafanhotos,
As cintilações faiscantes das ferraduras polidas,
Tudo profetizava - visões
do monge - que eu iria perecer.
Peguei no destino, atei-o à sela;
E agora que estou no futuro, permaneço
Hirto nos estribos como uma criança.

Arsenii Tarkovskii

17.5.09

Gaivotês

«Quer saber o que Joe Gould pensa do mundo e de tudo o que nele existe? Scriiic! Scriiic! Scriiic!»

Joseph Mitchell e Joe Gould, O Segredo do Joe Gould, p. 39

16.5.09

Brisa

Vamos viver no Nordeste, Anarina.
Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha.
Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante.
Aqui faz muito calor.
No Nordeste faz calor também.
Mas lá tem brisa:
Vamos viver de brisa, Anarina.

Manuel Bandeira (Belo Belo)

5.4.09

«Pois é: a minha revolução não dá um passo.»

"(...) Literatura. Merda. Trata-se de mais um dia em que me vou chatear, aturar os meus semelhantes, a filha-da-putice teológico-emocional de um Deus que, ainda por cima, não existe." (1)

"E depois, bruscamente, parte-se qualquer coisa. A aventura acabou, o tempo retoma a sua moleza quotidiana. Viro-me; atrás de mim, uma bela forma melódica mergulha inteira no passado: diminui, contrai-se ao declinar; já o fim se lhe confunde com o princípio. Ao seguir com os olhos esse ponto de ouro, penso que aceitaria - mesmo se tivesse estado em perigo de morrer, se tivesse perdido uma fortuna ou um amigo - reviver tudo, nas mesmas circunstâncias, dum extremo ao outro. Mas uma aventura não recomeça, nem se prolonga." (2)

(1) e título: Herberto Helder, Os Passos em Volta, p. 112
(2) Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 55

«Que revolução? A revolução, claro.»

"Sabe-se como é: quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço-me por imaginar que este dia é virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos, destinado às revelações. (...)" (1)

"Seria preciso, antes de mais nada, que os começos fossem começos verdadeiros. Oh! Vejo tão claramente, agora, o que pretendia! Começos verdadeiros, aparecendo como um toque de trombeta, como as primeiras notas dum ritmo de jazz, bruscamente, cortando rente o aborrecimento, consolidando a duração; noites entre as outras noites, das quais se diz mais tarde: «Andava a passear, era uma noite de Maio...» anda uma pessoa a passear (a Lua acaba de nascer), ociosa, disponível, um pouco vazia. E depois, de súbito, pensa-se: «Aconteceu qualquer coisa». O quê não importa: um ligeiro estalido na sombra, um vulto rápido a atravesar a rua. Mas esse acontecimento obscuro não é semelhante aos outros: percebe-se logo que vem à frente duma grande forma, cujo desenho se perde na bruma, e acrescenta-se: «É o começo de alguma coisa»." (2)

(1) e título: Herberto Helder, Os Passos em Volta, p. 111-112
(2) Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 54

O Tempo Coalhado

"Por cada cem histórias mortas, sempre me ficam, porém, uma ou duas histórias vivas. Essas evoco-as com precaução, de vez em quando, poucas vezes, com medo de as gastar. Peço uma, revejo o cenário, as personagens, as atitudes. Subitamente paro: senti um desgaste, vi uma palavra vir ao de cima da trama das sensações. Prevejo que essa palavra vai tomar o lugar, dentro em pouco, de várias imagens que amo. Imediatamente me detenho; penso depressa noutra coisa: não quero fatigar as minhas recordações. Em vão; da próxima vez que as evocar, parte delas terá coalhado." (1)

"Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra." (2)

(1) Jean-Paul Sartre, A Náusea, p.49
(2) Vergílio Ferreira, A Aparição, p. 9-10

O Tempo Perdido

O sol e o céu azul eram uma burla. Já caí neste logro umas cez vezes. As minhas recordações são como as moedas na bolsa do Diabo: quando a abriram, só lá estavam folhas secas.
Do serrano visiono apenas um olho furado, grande, leitoso. Mas esse olho é realmente dele? O médico que, em Bacu, me expunha o princípio dos sanatórios oficiais de abortamentos era também zarolho, e, quando quero recordar-lhe a cara, é o mesmo globo esbranquiçado que me aparece. Estes dois homens, como as Nornes, têm apenas um olho que cedem um ao outro alternadamente.

Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 48

28.3.09

«a crescer numa espécie de sentido ao contrário»

Quando eu tinha oito anos, e brincava no Luxemburgo, havia um que vinha sentar-se numa guarita situada junto ao gradeamento que margina a rua Auguste-Comte. Não dizia nada, mas, de vez em quando, estendia uma perna e olhava para o pé com um ar de terror. Esse pé tinha calçada uma bota, mas o outro estava enfiado numa pantufa. O guarda disse ao meu tio que esse homem era um antigo censor. Tinham-no reformado, porque viera ler as notas do período, nas aulas, em trajo de académico. Tínhamos um medo horrível dele, porque sentíamos que estava sozinho. Um dia sorriu para Robert, estendendo os braços para ele, de longe: por um pouco, Robert não desmaiou. Não era o ar miserável do tipo que nos metia medo, nem o tumor que tinha no pescoço, e que constantemente esfregava na beira do colarinho: é que sentíamos que ele gerava na cabeça pensamentos de caranguejo ou de lagosta. E a nós aterrorizava-nos que se pudessem alimentar pensamentos de lagosta quanto à guarita, quanto aos nossos arcos, quanto aos tufos de arbustos.
É isso então o que me espera? Aborreço-me, pela primeira vez, de estar sozinho. Gostava de falar a alguém do que me está a acontecer, antes que seja tarde, antes de meter medo aos rapazes pequenos. Gostava que Anny estivesse aqui.

Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 21
título: Herberto Helder, Photomaton & Vox, p. 88

«Acontece que os cenários desabam»

E depois, bruscamente, acordei de um sono de seis anos.
A estátua pareceu-me desagradável e estúpida, e senti que me aborrecia profundamente. Não conseguia compreender porque é que estava na Indochina. Que estava eu ali a fazer? Porque estava a falar com aquelas pessoas? Porque estava vestido de uma maneira tão exótica? Tinha morrido a paixão que me submergia e arrastara durante anos; naquela altura sentia-me vazio.

Jean-Paul Sartre, A Náusea, p. 17
título: Albert Camus, O Mito de Sísifo, p. 24

2.3.09

Leitura Oblíqua (acabemos com isto)

E quando ao fim de meses despertamos... acabou-se...

O meu Narciso, fi-lo à minha maneira.
Mas há muito que este diário me irrita.
Volto sem sobretudo.
Também isso me irrita.
Com uma otite e sem saber que fazer, mais irritações.
E ela, By, que terá feito de todo o seu ano?
Parece-me que choraminguei bastante durante toda esta viagem,
Era mais forte do que eu; como uma dívida para com a
minha infância. Eu compreendo-me.
Era agradável pensar que podia fazê-lo,
Eu, mais conhecido como uma velha pele de revolta e raiva.
(...)
O quê? Ainda a tremer?
Ah! Sim, chegamos amanhã.
(...) e ei-lo todo alterado.
Claro! Está de regresso.

Fala alto, é insolente,
Engrossa a voz, vomita alegria,
É evidente que não mudou,
Vítima por igual dos bons e maus momentos.
Numa palavra: comovido.
Vá lá, acabemos com isto.

Henri Michaux, Equador, p. 153-154

1.3.09

Leitura Oblíqua (IX)

Agora estou convencido. Esta viagem é uma asneira. Longe de nos alargar as vistas, viajar torna-nos mundanos, "ao corrente", ávidos de aspectos interessantes, distintos, com o ar estúpido de fazer parte de um júri de prémio de beleza.
Também confere um ar desenrascado. Não é melhor. É possível encontrar a nossa própria verdade contemplando quarenta e oito horas seguidas qualquer tapeçaria de parede.

Henri Michaux, Equador, p. 109

28.2.09

Leitura Oblíqua (VIII)

Nasci Esburacado

É apenas um buraco insignificante no meu peito,
Mas sopra aí um vento terrível,
No buraco há ódio (sempre), pavor também e impotência,
Impotência densíssima de vento,
Forte como os turbilhões.
Partia uma agulha de aço
E não é mais do que vento, mais que vazio.
Maldição sobre a terra inteira, sobre toda a civilização,
sobre todos os seres à superfície de todos os planetas,
por causa deste vazio!

Henri Michaux, Equador, p. 85

26.2.09

Leitura Oblíqua (VII), Freudiana nº2

Escrevo mais uma vez uma carta a meus pais.
A necessidade que tenho de me gabar perante eles! É a minha vingança. Tanto vaticinaram o lerdo zé-ninguém. Grandes frases põem-se irresistivelmente a gabar-me:
"Moro numa cabana de bambus, sustentada por troncos de palmeiras. Aqui, na noite passada, um tigre devorou uma mula, etc."
(...)
Mas de facto não escrevo a carta. Nunca lhes escrevo. Desconfio. Se o tigre me devorasse uma perna, ou nem tanto, se viesse a apanhar uma boa pleurisia na cabana de bambus, eles teriam razão... uma vez mais.

Henri Michaux, Equador, p. 61

3.2.09

Leitura Oblíqua (VI)















Todos os quadros japoneses se parecem com ressurreições. Aqueles nevoeiros levam e ensinam seguramente o olhar, enternecem-nos a visão, sugerem não ser o rosto da natureza e do próprio mineral tão duro nem tão inquebrantável como julgávamos, mas fraco, desamparado, sujeito a tantas perturbações como o corpo da mulher, inspirando-nos simpatia. Há também a pequena nuvem carregada. Deixa-se ficar num buraco todo o dia, ou então esconde-se em qualquer canto de uma pastagem e suga uma ovelha, a fundo.

Henri Michaux, Equador, p. 53 (pintura de Takeuchi Seihō)

31.1.09

Leitura Oblíqua (V), Freudiana nº1

Tanto desejei ter um pai. Quer dizer: um pai como a mulher... que se procura, se escolhe e quando se encontra, é a grande maravilha.

Henri Michaux, Equador, p. 47

Leitura Oblíqua (IV)

Não sou grande cabeça, de maneira que me escapam muitas coisas que devia compreender. É lamentável.
Os doentes vêem personagens infernais nas paredes dos quartos, onde afinal só há pequenos incidentes de luz, linhas, manchas, uma fenda.

Henri Michaux, Equador, p. 35-36